Dóceis, automáticas e outras maquinações

Questionava-se todos os dias sobre a causa de tamanha passividade perante o caos crescente do mundo. Olhava para dentro de si, olhava à sua volta, olhava para trás e encontrava um enorme silêncio paralizante. Aprendeu a nada questionar e a não reagir. Tinham-lhe dito que “quem nasce mal fadado melhor fado não terá”. Que há verdades inquestionáveis. Que é assim a vida. E que só há uma maneira de viver. Tudo o que aprendeu foi a suspirar dolorosos “ais”. E dentro de si o estômago corroía-se mais e mais de impotência, de estranha inoperância. Se calhar há uma genealogia para esta passividade…
Nos baús de todas as casas encontrava imagens esbatidas de pais, tios e primos numa terra longínqua. Uns apareciam de espingarda na mão, outros com um macaco ao ombro e outros ainda degolavam pretos e jogavam futebol com as suas cabeças. Que História era esta que nunca lhe foi explicada? Guerra Colonial? Guerra de Libertação das antigas colonias? Quem teria sido capaz de tamanha violência? Se nós somos tão pacifícos, passivos, solidários, tolerantes, caridosos e dóceis.
Só depois compreendeu que tinha sido criado um exército de bons-homens-maus capazes de matar, degolar, incendiar e calar. Como diz Foucault, “A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis” (…) aumenta as forças do corpo (em termos económicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos politicos de obediência).”
Hoje, os medos, terrores e traumas passados desenhavam-se na memória dos corpos e eram os fantasmas de todos nós – pais, filhos, netos. E o silêncio, que favorece a não inscrição das feridas na realidade quotidiana, transformara-se numa herança de culpabilidade. Construíam-se agora exércitos de paralíticos sociais, presos a novos fados e melancolias, com medo de agir e de cortar a cabeça a quem não a merece.
Sonhava com revoluções…

Mariana Bacelar
Porto, Março de 2010

Texto para a exposição "Dóceis, automáticas e outras maquinações" na Cooperativa Árvore de 26 de Março a 28 de Abril de 2010
http://www.arvorecoop.pt

Tales of Wrongdoing

This body of work is about power and domination. I am addressing the theme of the master-slave relationship within normalized social roles and behavior. It is when someone chooses to impose unjust power over another. The master-slave theme can also be perceived on a global scale. In my journey that took me, by land, from Europe to China (from West to the East) I observed the negative effects of corporate globalization where nations, cultures and identities are being homogenized in the pursuit of profit and power.

Significant to this body of work is the painting entitled Cronos by Goya in which a giant is depicted consuming his son in fear of losing his power to him. Another motivation on this work is the story of the biblical figure Jonah and the whale. It is a story where the whale consumes Jonah in which he lives inside its stomach for three days but then survives. I see this story as metaphor for the possibility of rebirth. These two stories are of central concern to me because I see them as powerful allegories telling two different stories of struggle within the master-slave relationship.

In this body of work I employ the giant metaphor within different childhood scenarios. I try to use the condition of innocence within childhood as a way to represent vulnerability as well as processes of maturation within society and the individual. In many of my works I present a young heroine. This heroine originates from the memories of my childhood books. The heroines in these books are used as representations of roles models for socially acceptable behavior for young girls. In coming to China, I discovered that the images of the idealized western girl and eastern girl are identical with the exception of the shape of the eyes and the party ideologies of individualism and collectivism. I play with this icon and I try to give another life to these heroines where the unreal talks about the real.

Wrongdoing é o nome de uma menina-heroína que tem vindo a desenvolver-se e a tomar lugar no meu projecto. É uma personagem dos livros da minha infância e da qual me apropriei como cicerone de diferentes fábulas/aventuras sobre a realidade.

Interpretando diferentes personagens da história das culturas, esta menina faz-se passar por figuras mitológicas femininas que servem de parábola para os temas que pretendo abordar.

E esses temas são o autoritarismo e a manipulação em diferentes tipos de relações de poder. Tanto a nível dos comportamentos sociais normalizados, quando alguém impõe injustamente a sua autoridade sobre o outro, como a nível global onde a chamada globalização corporativa impõe o seu interesse económico de forma a homogeneizar culturas e identidades específicas.

Destes temas surgem imagens que utilizo e desenvolvo no meu trabalho tais como a clonagem ou multiplicação, a perseguição e o medo, a aglutinação ou devoração, a inquisição, a opressão.

Estas imagens são sempre integradas em diferentes cenários infantis. Desta forma pretendo usar a condição da inocência infantil como forma de representar a vulnerabilidade, bem como os processos de maturação na sociedade e no individuo.
O facto de as protagonistas destes temas serem crianças é porque vejo nelas a capacidade latente de rebelião e mudança. Considero esta vitimização como um estado temporário de sujeição e não como uma condição perpétua.

Os mitos, as fábulas e os ícones, devido ao seu carácter metafórico e fantástico, foram desde sempre a forma por excelência de divulgar regras e ideais de conduta nas sociedades. Tal é o caso das heroínas dos livros da minha infância que eram representações do ideal social de menina, ditando assim desde a infância o papel da mulher na sociedade.

No meu projecto pretendo reinterpretar antigos mitos e símbolos que me parecem ainda actuais e trabalhá-los numa linguagem plástica e visual, utilizando a escultura e o vídeo em instalações/cenários de forma a potenciar o imaginário e o sonho. Pretendo usar a alegoria como forma de interpretação e diálogo sobre a contemporaneidade.

Haidong, Lijiang, China, Março de 2007
Texto para a exposição no Haidong Exhibition Space em Março de 2007

Wrongdoing

Wrongdoing é o nome temporário da menina - heroína que tem vindo a desenvolver-se e a ganhar forma no trabalho de Mariana Bacelar.

Passeando-se por entre a história das culturas, a figura caracteriza-se pela capacidade de se metamorfosear em qualquer personagem infantil feminina de uma fábula, um conto de fadas, uma aventura, um mito, um cartaz publicitário. Para além do espaço e do tempo, a figura afirma-se através da criação de um referente visual que consubstancia na plenitude a identidade pós-mordena: dinâmica, fluida, fragmentária e múltipla.

A figura passeia-se por todo o mundo geográfico real ou imaginário, de Guimarães a Lijiang ou de uma floresta desconhecida ao paraíso perdido. Passeia-se em todo o tempo, passado e futuro, desde a Grécia clássica à contemporaneidade robótica.

A Wrongdoing vai adquirindo matéria diferente. Pode ser dura e permanente de cimento ou de resina, mas também efémera, macia, comestível, quando se faz de gelatina ou chocolate. Pode ser indigesta ou venenosa e pode perder-se ao fazer as delicias de uma refeição partilhada. Às vezes esvai-se na intangibilidade de uma imagem projectada em qualquer canto.

Multiplica-se e gera múltiplos (como em “Wrong Doing I” ou em “Hoje foste um bom robot?”); divide-se (como em “Finish Your Food”); revolta-se (“Lost Paradise – The Newton Apple); apavora-se (Globarbarização); e floresce (“A menina jardim”).

No seu conjunto, a artista coloca-nos perante imagens de reprodução, multiplicação, clonagem, multiplicação, perseguição, opressão, libertação, manipulação ou liberdade... Imagens que nos falam de relações de poder, reais e imaginárias, criando um paradoxo que é, afinal, o da complexidade contemporânea de uma realidade onde nada é apenas aquilo que é, mas também algo do seu contrário: uma inocência infantil (que talvez não seja tão inocente), uma vulnerabilidade (que talvez não seja tão vulnerável), uma maturação (que talvez não assim tão madura).

Uma figura de criança que assinala o potencial latente de um fluxo de mudança e que transformada no icón do trabalho da artista, insiste em escapar-se-nos, como se nos escapam os mitos ou os símbolos, sempre que temos a veleidade de os querer agarrar ou confinar. A Wrongdoing fala-nos, e vai continuar a falar-nos, de identidade, diversidade, homogeneização, globalização, localidade, reprodução, singularidade, tradição e pós-modernidade.

Se em a “A Menina Jardim”, utilizando elementos compositivos vivos, Mariana Bacelar dá vida à arte e afirma uma cultura que não se opõe à natureza, mas que com ela vive em harmonia, pelo contrário, em a “Globarbalização”, a artista perante Saturno, esse deus que tudo devora, isto após aquilo e um após o outro, sem distinção, e nos recordando da última e, talvez, única igualdade.

O trabalho de Mariana Bacelar habita um espaço intersticial no qual confluem, em simultâneo, tradições filosóficas asiáticas e tendências da pós-modernidade. Em última análise, Mariana Bacelar fala-nos de uma nova ética. Uma ética situacional capaz de conferir dignidade às escolas individuais e de, simultaneamente, restaurar as ligações entre as idades, os géneros, as culturas, os indivíduos, os seres vivos e o cosmos.



Wrongdoing is the temporary name of the little girl – heroine who as been developing and taking form in Mariana Bacelar’s work.

Wandering across the history of cultures, this figure is marked by the capacity to metamorphose into any female infant character in a fable, a fairy tale, an adventure, a myth, a publicity placard. Beyond space and time, the figure asserts itself through the creation of a visual referent that entirely personifies post-modern identity: dynamic, fluid, multiple and fragmentary.

The figure strolls all over the geographic world, real or imaginary, from Guimarães to Lijiang, or from an unknown forest to the Lost Paradise. It wanders through the ages, past and future, from classic Greece to robotic actuality.

Wrongdoing embodies different substances. It can be hard and permanent, made of concrete or resin, but it can also be transient, soft and eatable, when it becomes jelly or chocolate. It can be indigestible or poisonous, or lose itself when turning into a shared meal’s delicacy. Sometimes it just fades away in the intangibility of an image projected in any corner.
It becomes multiple (like in “ Wrongdoing I” or “ Have you been a nice robot today?); it is rebel (“Lost Paradise, Newton’s Apple”); it is terrified (“Globarbarização”); and it blossoms (“The Garden Girl”)

In a general sense, the artist places us in the presence of images of reproduction, multiplication, cloning, persecution, oppression, liberation, manipulation or freedom. Images that speak of relations of power, real and imaginary, generating a paradox which is, after all, that of contemporary complexity of a reality where nothing is only what it is but also something of it-s contrary: a childish innocence (that maybe is not so innocent), a vulnerability (that maybe is not so vulnerable), a maturation (that maybe is not so mature).

A puerile figure that marks the hidden potential of a change flow and that, having become the artist’s icon, insists in eluding us, as myths or symbols do, whenever we fancy to grab them or confine them. Wrongdoing talks and will keep talking about identity, diversity, homogenization, globalization, localization, reproduction, singularity, tradition and post-modernity.

If in “The Garden Girl”, by assembling living elements in a composition, Mariana Bacelar gives life to art and stands for a culture that doesn’t oppose to nature but lives in harmony with it, in “Globarbarização”, on the contrary, before Saturn, that god who devours everything, this after that, one after the other, without distinction, the artist reminds us of the last, and maybe the only one, equality.

Mariana Bacelar¬’s work inhabits an interstitial space in which Asiatic philosophical traditions and post-modernity tendencies flow together. In the long run, Mariana Bacelar talks about a new ethics. A situational ethics capable to impart dignity to individual options and, simultaneously, re-establish the links between generations, cultures, individuals, living beings and the Cosmos.

Margarida Saraiva
Macao Museum of Art researcher
Master in European Cultural Planning by De Monfort University, Leicester, United Kingdom

2007